Cultura

Quando a música toca no peito

Fotografia gentilmente cedida por Daniela Pinto

André Viamonte apresenta-se em Coimbra, no dia 22 de junho, no Auditório Conservatório de Música. Atento às realidades dos contextos sociais onde trabalhou enquanto musicoterapeuta, revela a fórmula para “reciclar a dor em arte”. Como? Através da sua constante capacidade empática. Por João M. Mareco

Como vai ser o seu concerto em Coimbra? 
Vou expor todas as músicas do álbum Via. 

Qual é a faixa etária do seu público? 

As gerações são completamente díspares, desde os 15 até aos 60 anos. Num concerto em Lisboa, aconteceu-me que uma adolescente se comoveu ao lembrar a mãe e, ao mesmo tempo, uma senhora já de idade também recordou a sua, que provavelmente já tinha perdido. Naquele momento, pareceu-me que a idosa que se viu na obrigação de dar a mão à menina. 

Quais as expectativas para o concerto em Coimbra? 

Obviamente que é inevitável não existirem boas expectativas, porque vejo o público de Coimbra como o mais equilibrado de Portugal. As pessoas do Norte são extramente emotivas as do Sul são mais reservadas, sendo assim, o público de Centro é o mais equilibrado. 

Para além de músico o André é músicoterapeuta. Como é que a música tem capacidade de ajudar as pessoas?

Depende da forma como é feita a intervenção, de quem é que está a trabalhar a música e do método utilizado. Como é óbvio, existem diferentes tipos de música que criam estados e ambientes distintos, mas, quando vamos para o mundo da musicoterapia, a música tem sempre o objetivo de intervir terapeuticamente.

O André realiza seções de musicoterapia?

Já trabalhei nessa área durante o meu mestrado no Casal Ventoso. Dedicava-me às áreas da perda, da oncologia e dos cuidados paliativos. Mas agora estou em áreas mais abrangentes. Na musicoterapia existe um lado científico, que se prende com o diagnóstico e o método, onde se detetam as lacunas do paciente e se traçam os objetivos a atingir. No meu caso, tentei fazê-lo de forma criativa, trabalhar várias técnicas.

Que técnicas existem na musicoterapia?

Dentro da musicoterapia existem técnicas ativas, recetivas e mistas. Técnicas ativas estão ligadas à composição, recetivas prendem-se com a escuta da música e mistas misturam as duas. No Casal Ventoso, por exemplo, trabalhei com grupos de senhoras que tinham perdido os filhos. Levei instrumentais meus para as sessões e criei com elas letras relacionadas com os entes falecidos. 

“Comecei então a perceber que a música pode, de facto, unir. Foi também nesse momento que me redescobri enquanto compositor e cantor”

Nas técnicas ativas é o paciente que elabora uma letra?

Exatamente. Desviei-me dos métodos científicos e saí da típica metodologia de trabalho porque todos os artigos científicos eram muito ligados aos Estados Unidos da América e, na minha ótica, os casos que tinha à minha frente prendiam-se com questões muito portuguesas. Tentei, por isso, arranjar uma forma mais criativa de chegar à população.

Qual o resultado dessa sessão?

As pacientes criaram letras sobre os próprios filhos, comigo enquanto mediador. De repente, senhoras que nunca falavam da perda dos filhos criaram uma canção a partir do instrumental que eu tinha trazido. Comecei então a perceber que a música pode, de facto, unir. Foi também nesse momento que me redescobri enquanto compositor e cantor. Eu já era cantor, mas não o tinha assumido. 

Essa redescoberta influenciou as suas músicas?

Sim, andei à procura da minha identidade em vários estilos musicais. Fui vocalista de uma banda de metal melódico, fui cantor de ‘jazz’ e de ‘soul’ e andei em musicais. Gostava de tudo, no entanto, nada fazia verdadeiramente sentido para mim. Entretanto, acabei por me dedicar a algumas produções que não correram bem. 

Porquê?

Via as minhas produções a serem concebidas de uma maneira em que não me revia. Deixei as minhas músicas em ‘stand by’, juntei-me com várias pessoas e fui fazendo alguns projetos, mas nunca gostava o suficiente do resultado. Como não era a minha cara, acabava por desistir da ideia.

“Começámos a cantar “amor de uma saudade / saudade de um amor / a felicidade da saudade é filha de amor”. De repente, elas perceberam que estavam todas unidas no mesmo processo de luto”

E depois?

Comecei a caminhar na musicoterapia. Já tinha aberto um espaço de terapias complementares com colegas meus e fiz a tese de mestrado na Universidade Lusíada.

Realizou a sua tese no Casal Ventoso?

Sim, nessa altura realizei musicoterapia com vários grupos. O grupo da perda, das relações interpessoais e ainda o da estimulação cognitiva com pessoas com alguns traços de demência. Identifiquei esses três grupos e escolhi uma composição minha para cada um, em que os pacientes tinham de fazer uma técnica ativa.

Sempre com o seu apoio?

Sim, enquanto terapeuta. Recordo ainda um episódio que se passou dentro desse grupo de perda. Eram cinco senhoras, todas reunidas num círculo, e eu pedi-lhes para escolherem uma palavra que lhes fizesse lembrar os filhos. Elas disseram “amor, saudade, felicidade, filho”. Entretanto agarrei na guitarra e sugeri tentar ligar as palavras num refrão. Começámos a cantar “amor de uma saudade / saudade de um amor / a felicidade da saudade é filha de amor”. De repente, elas perceberam que estavam todas unidas no mesmo processo de luto. 

De certa forma foi libertador porque todas estavam a sentir a mesma dor?

Sim, porque apesar de desconhecerem as histórias umas das outras sentiam dores parecidas. Estamos a falar de perdas ligadas à droga e violência. Histórias muito complexas. Eram mães que perderam os filhos e mulheres que perderam companheiros todas unidas no mesmo sentimento de tristeza, porque estavam sós.

Quais as técnicas utilizadas nos outros grupos? 

Fiz o mesmo noutros grupos mas com diferentes mensagens e objetivos, como a memória, a atenção e a concentração. No grupo das relações interpessoais, tentei quebrar todo o constrangimento inicial, raivas e irritabilidades existentes entre as pacientes. Através dos ritmos próprios do folclore português, elas criaram um sentimento de pertença e começaram a falar. 

Os conflitos iniciais do grupo foram ultrapassados?

Sim, porque através dos ritmos como o “malhão, malhão” a música conseguiu levá-las ao seu passado, quase como se voltassem a ser crianças e percebessem que está tudo bem.

“Há também a “Heartland”, a história de uma mãe que procura a comunidade para pedir ajuda porque se sente sozinha ao ver a filha morrer todos os dias por causa da quimioterapia”

A música resolveu os conflitos? 

Sobretudo descontraiu as pessoas que se recusavam a cantar. No início, estavam a fazer birra, mas ao fim dos minutos estavam à gargalhada. As pessoas percebem que não fazia sentido estarem chateadas porque a vida é demasiado pequena para se viver tão pequenamente.

O que de melhor retira dessa experiência? 

A parte mais notória e bonita que levei foi a do grupo de perda. Eu desafiei-as e disse-lhes que íamos ter de fazer um pequeno concerto com os outros grupos. Juntei todas as senhoras e atuámos com estas canções. Posso dizer que não estava preparado para o que ia ver. 

Porque diz isso?

Digo isto porque estamos a falar de pessoas duras com histórias de vida marcantes… Pessoas que a sociedade de certa forma magoou. Quando chegou o grupo da perda, houve automaticamente um comentário “ah! isto já é diferente, já é um bocadinho triste”. Cantámos o refrão. Uma senhora, que já vivia o luto do filho há anos, começou a chorar logo depois de dizer o nome do filho. Estava ali em puro sofrimento. 

Estava à espera de que aquilo não corresse bem e, subitamente, oiço um grupo inteiro de mulheres a cantar o refrão e ela começou a cantar também. Foi das coisas mais bonitas que já vi. Percebi que se a música traz esta união é aquilo que quero fazer para o resto da vida. 

Aquela tristeza, amargura e dor foi transformada em união? 

De forma invisível foi como se a música fizesse com que as senhoras estivessem de mãos dadas. Eu tive de me ir embora porque não consegui aguentar. 

Nas suas sessões de musicoterapia esse instrumental era muitas vezes escolhido?

Cinco dos meus pacientes escolhiam sempre este tema. 

Como é que se explica isso?

O diagnóstico era sempre o mesmo, perda. Havia a tendência de os pacientes irem à procura destes acordes para satisfazerem algo dentro deles. 

“A empatia é a disponibilidade que alguém tem para se comover com a história de outrem”

Todas estas experiências influenciaram o seu álbum? 

Sim, quis fazer um álbum que pudesse ser uma plataforma aberta a uma comunidade inteira. Queria que fosse um pretexto para ajudar alguém. Este álbum agrega todas estas experiências. Existem músicas, como “Reunion”, que falam de abusos sexuais, de pessoas a quem é tirada a inocência, mas histórias em que ela se reergue e volta a acreditar que é amada. Há também a “Heartland”, a história de uma mãe que procura a comunidade para pedir ajuda porque se sente sozinha ao ver a filha morrer todos os dias por causa da quimioterapia. Os atores não conseguiram fazer o ‘videoclip’ da música e foi a própria família a fazê-lo e a dar o recado de que “a situação retratada poderia acontecer a qualquer um”.

A sua música pretende dar voz a essas dores? 

Na minha própria dor vou buscar a dor de todos com quem trabalhei, por isso, o álbum Via não deixa de ser uma história autobiográfica. Vejo a música quase como uma forma de reciclar a dor em arte. 

A sua música utiliza a dor, transformando-a em algo que combata essa mesma dor?

O meu trabalho foi colectar as dores de todas as pessoas e colocá-las em cada tema, atribuindo uma solução melódica que fosse uma obra de arte bonita e que pudesse ser partilhada.

Sentia a dor dos outros como sua? 

Acredito que o que é nosso é nosso; porém, a empatia permite sempre colocar-nos no lugar do outro, dando-lhe a oportunidade de perceber que não está sozinho. É algo diferente da simpatia. A empatia é a disponibilidade que alguém tem para se comover com a história de outrem.

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