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Cena Lusófona inaugura Sala Brincante

“Uma cerimónia íntima mas que tem um enorme simbolismo”, foram as palavras de António Augusto Barros na inauguração da placa que ilustra a homenagem ao artista brasileiro. Antônio Nóbrega dá nome ao último piso das instalações que o Município de Coimbra disponibilizou para a Cena Lusófona. Pretende-se que seja “um grande laboratório” de divulgação das diferentes culturas da comunidade dos países de língua oficial portuguesa. Por Isabel Simões

“Que a palavra Brincante tenha para Portugal o mesmo sentido que tem para nós brasileiros, embora seja uma palavra que ainda esteja à deriva de, pelo menos, um Brasil que eu sonho e que ainda não existe”, afirmou Antônio Nóbrega ao agradecer a homenagem.

As instalações da Cena Lusófona – Associação Portuguesa para Intercâmbio Teatral, na Ala Central do Antigo Colégio das Artes, no Pátio da Inquisição, recebem o projeto Ocupação Brincante até este domingo, dia 30 de setembro. Hoje mesmo, pelas 16 horas, tem lugar a aula-espetáculo de música e poesia, Mátria, no Teatro da Cerca de São Bernardo.

António Augusto Barros foi convidado ao tempo do governo de António Guterres para dirigir a Cena Lusófona em 1995. Na última sexta-feira esteve à conversa com o Jornal A Cabra sobre o futuro.

Quais são os planos para a Cena Lusófona para este espaço agora inaugurado?

A Cena Lusófona, com estas novas instalações cedidas pela autarquia, que foram durante muito tempo esperadas, têm agora digamos que um pretexto bem material, bem visível, que foi justificado pela sua prática anterior, para relançar a sua atividade. A Cena Lusófona é um projeto que é lançado em 1995 e que até 2005, durante uma década, teve a regularidade do apoio do Estado através do Ministério da Cultura. Permitiu-lhe atingir níveis de intervenção, criou uma rede em todos os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que funciona até hoje e que possibilitou fazer coisas à distância, com planificação desde logo. Foram realizadas atividades mais no domínio do teatro mas foi uma ação que também abrangeu o cinema, as artes plásticas e, sobretudo, a música, porque o teatro tem esse potencial de convocar as outras artes. Era possível os artistas reunirem-se, fazerem espetáculos em conjunto, organizarem festivais, ações de formação, troca de saberes.

Portugal e o Brasil têm uma comunidade mais avançada em determinados níveis e essa comunidade podia ser mobilizada. Por outro lado, as culturas em presença têm sinais distintivos e diferenciadores que podem ser chamados ao palco. Durante essa década foi possível dar essa ideia e no fundo defender que uma comunidade como a CPLP deve ter a cultura à frente de tudo. Infelizmente, o apoio do Estado em determinada altura feneceu e nós ficámos desequilibrados durante um período, porque estas produções são possíveis se a sociedade permitir que elas existam. Como é evidente, organizar coisas nos vários países, tudo isso fica muito caro, tem custos que não são propriamente os provenientes dos próprios artistas, mas sim de logística, e que sem o apoio dos Estados, sem o apoio da sociedade, não são possíveis. Mas sem isso a CPLP tem dificuldade em existir, enquanto comunidade. Eu acho que ainda nem toda a gente viu isto. Os empresários dizem que é importante, todos os setores sociais dizem que é importante e vão tentando fazer as suas coisas com altos e baixos. As conjunturas são umas e depois são outras, têm variado muito. Eu acho que o poder político e o poder económico ainda não perceberam que a cultura é o cimento de tudo.

Ao longo dos tempos coloniais, durante 500 anos, fomos semeando violência e desigualdades. Hoje os tempos são outros. Hoje é preciso trabalhar em igualdade de circunstâncias com alguém que é autónomo e soberano. É o tempo de conhecermos bem, de forma minuciosa, a cultura dos outros. A forma de respeito é essa. É dar tempo à cultura dos outros. Nós precisamos de as conhecer bem e não as conhecemos bem. O Antônio Nóbrega é disso um exemplo. Este manancial de manifestações populares e artísticas que pegaram no tesouro que veio da nossa cultura peninsular e europeia e a transformaram. Nós não conhecemos isso, na sua exata dimensão. Volta e meia temos uns afloramentos com a vinda de um cantor, com isto e com aquilo, mas não a conhecemos.

O próprio Quim Barreiros tem afirmado que algumas das suas músicas são baseadas em autores de música popular brasileira…

O Brasil é realmente um mundo muito fértil!

Antônio Nóbrega e António Augusto Barros

Quem é o Antônio Nóbrega? 

É uma pessoa que trabalha connosco há muito tempo, desde antes da Cena Lusófona. Há uma espécie de arqueologia da Cena Lusófona que é o momento em que começou a desenvolver o seu projeto, mas não com autonomia. Foi por convite do Ministério da Cultura que eu comecei a dirigir um programa em 1995, ainda não existia a Cena Lusófona como estrutura. Foi no ano a seguir que ela se criou. No primeiro ano, fizemos um grande festival em Moçambique e no segundo, em 1996, fizemos no Brasil. Houve logo um encontro com o Antônio Nóbrega. Na altura, tínhamos uma fundação no Recife que colaborava connosco, mas não foi aí que o encontrámos. O Antônio Nóbrega é pernambucano mas viemos a encontrá-lo em São Paulo, onde nessa altura já estava instalado.

Eu comecei a fazer com ele uma aula-espectáculo. O Antônio Nóbrega cedo estudou música clássica, violino sobretudo, mas também cedo se apaixonou pela cultura popular. Teve a sorte de encontrar um grande mestre, uma grande figura a quem ainda ninguém nesta comunidade toda prestou a homenagem que ele devia ter, que é um grande nome da cultura brasileira chamado Ariano Suassuna. Uma grande figura de Pernambuco, mas também do Brasil inteiro. Foi um enormíssimo dramaturgo, romancista e, sobretudo, um intelectual. Ele foi um grande estudioso da cultura peninsular desde a Idade Média, como essa cultura passou para o Brasil nos chamados Descobrimentos e depois se transformou. Ele participou disso, estudou e divulgava.

Eu acho que o poder político e o poder económico ainda não perceberam que a cultura é o cimento de tudo

Ariano Suassuna nunca chegou a vir a Portugal porque ele tinha medo de andar de avião, mas conhecia. É muito curioso porque um dia estive com o filho no Instituto Brincante do Nóbrega, o Dantas Suassuna, que é um artista plástico incrível. Contou que veio a Portugal e que antes de vir o pai lhe recomendou “tens de ir a Sintra e depois vais lá ao castelo e o castelo é assim… tu entras e depois tem uma sala e depois tem o claustro ali”. O pai nunca tinha vindo aqui a Portugal, ele era um erudito e o conhecimento dele da cultura portuguesa e ibérica de uma forma geral era extraordinário.

O Antônio Nóbrega teve a sorte de, nesses tempos de jovem no Pernambuco, ter sido convidado pelo Ariano Suassuna para a formação daquilo que se chamou o Quinteto Armorial, que teve uma influência enorme no país todo. Pela primeira vez, eles trabalhavam sobre as raízes populares da música do nordeste. O grupo teve um enorme sucesso. O Antônio Nóbrega é aquilo que nós podemos chamar o artista completo. Para além de um grande músico, é bailarino, ator, cantor e também ele um erudito, um homem que conhece de forma profunda a cultura popular do seu país, como poucos.

Em 1996 tive o prazer de ver uma aula-espetáculo dele na Universidade de São Paulo. De repente, percebi quem ele era, fui à procura, fomos falando. Depois vim a conhecer o Instituto Brincante que ele construiu e que existe até hoje em São Paulo. Lá fazem estudos sobre a cultura popular e realizam trabalhos a partir dessa cultura. É um artista muito conhecido no Brasil também pelos seus ‘shows’, pelos espetáculos musicais que faz. Tem muitos discos e é uma referência da cultura brasileira. Entretanto, fomos fazendo coisas em conjunto. O António esteve aqui na Estação em 2003 na Cena Lusófona com um trabalho seu e com a sua orquestra.

Agora neste tempo de relançamento da Cena Lusófona e com estas instalações, tendo uma sala como esta para fazer oficinas, entendemos chamar-lhe Sala Brincante em homenagem ao Nóbrega. Brincante porque o termo é muito interessante e ele foi buscá-lo às suas raízes do nordeste, onde estes artistas populares são chamados de brincantes ou folgazões e são muitíssimos. Hoje na oficina dele falámos de alguns deles, mas são centenas de poetas populares extraordinários. Artistas de cantigas ao desafio, uma coisa que hoje está em desuso aqui mas que soubemos levar para lá e que eles ampliaram de uma forma extraordinária. Nós queremos que esta Sala Brincante seja realmente um laboratório futuro para que muitos mestres de outras culturas africanas, brasileiras, etc, possam vir aqui dar aulas e que possamos trocar impressões com eles e com os artistas.

Para além do Antônio Nóbrega está mais alguém em programação? 

A Cena Lusófona está a tentar. Houve um tempo em que realmente nós provámos que era necessário dar essa importância à cultura e criar essa comunidade. Eu acho que a CPLP está numa fase muito má, muito má mesmo. O último exemplo mais forte foi a entrada da Guiné Equatorial, uma entrada pressionada por Angola, num determinado tempo em que no país estava um presidente que se chamava José Eduardo dos Santos, onde o negócio imperava. A Guiné Equatorial veio por causa do petróleo e do negócio e nisso também foi apoiada pelo governo brasileiro. Os portugueses mal espernearam quando se deviam ter oposto de forma firme.

A entrada da Guiné Equatorial foi uma ferida aberta que não vai fechar tão cedo, porque não estou a ver a coragem dos outros países a expulsarem, apesar de o país ser uma ditadura o que contraia todos os princípios da CPLP. É uma sociedade onde ainda existe a pena de morte e onde o português não se fala e mal se compreende. Mas não é só isso, a organização está também a ser tomada por uma espécie de casta que são os nossos diplomatas que fizeram dali uma construção burocrática de difícil acesso e de pouca prática.

Não nota diferença agora que a Europa tem um programa de colaboração que tenta alterar a relação com o continente africano?

Isso existe mais uma vez no campo teórico. Tudo na Europa é muito lento, mesmo as formas de cooperação concreta que já existiam no âmbito do Fundo Europeu de Desenvolvimento para os países da África, Caraíbas e Pacífico (ACP) estiveram para deixar de existir. Muitas vezes o discurso é contraditório com a prática e atira-se para cima da mesa um determinado discurso para, no fundo, ganhar tempo. Não estamos nesse tempo, embora há muitos anos pessoas lúcidas tenham alertado que os problemas de África haviam de cair em cima da Europa, quer a Europa quisesse quer não. É o que está a acontecer, nesta vaga de emigração. A Europa quer controlar e não consegue. Claro que a migração foi tornada exponencial pelas guerras, mas não precisava de ser exponencial para existir. Não tem sentido ter sugado durante séculos um continente e, depois, com as independências, retirar os quadros que estruturavam as sociedades. As sociedades ficaram abandonadas. África precisava de ter um investimento sério, não ganancioso. Não de uma sociedade que quer voltar para ser neocolonialista. Isto fala-se há muito tempo, mas ninguém quis ouvir. Agora estamos numa fase em que levamos com isso porque as pessoas não podem viver lá, têm de sair. Por razões económicas, para viverem e terem dignidade. Isso é mau para África porque as pessoas saem e é mau para a Europa no sentido em que uma vaga desse género também pode desequilibrar as coisas aqui.

E isso reflete-se na cultura e na atividade dos grupos de teatro e de dança que colaboravam convosco?

Eu acho que se reflete é na economia. Na sociedade e na política há falta de cultura e de laços. O grande objetivo da Cena Lusófona era desenvolver esses laços. Não é difícil de compreender que dois grupos que podem ter dez ou quinze pessoas cada um, se de repente decidem unir-se e fazer um espetáculo em conjunto, vão durante dois a cinco meses viver juntos, partilhar coisas, conhecerem-se. Foi muito o que aconteceu com a Cena Lusófona. Depois das coproduções, depois dos estágios internacionais de atores, em que concentrávamos jovens atores dos vários países aqui. Depois de tudo isso, ainda há multiplicação porque as pessoas entre si ficam. Mesmo fora da atividade da Cena, as pessoas entre si ficam amigas, conhecem-se, querem trocar coisas.

Uma pessoa está no Piauí, outra está em Luanda e trocam coisas de forma efetiva. Isso aconteceu mesmo no concreto, um dos brasileiros que era do Piauí esteve no primeiro estágio internacional de atores aqui, regressou ao Brasil e organizou o FestLuso – Festival de Teatro Lusófono, um festival a partir da Língua Portuguesa. Isto é só um exemplo dos muitos que aconteceram.

Uma programação como a da Cena Lusófona, durante esse período em que o Estado investiu, foi muitíssimo importante e reprodutiva, até porque depois disso não houve mais nada. Não se encontra nenhum projeto do mesmo teor, depois desses tempos áureos da Cena Lusófona que foram até 2005 – 2006. Embora tenha sido uma ideia fundamental para as fases posteriores da economia, da política e da sociedade, a ideia não tem sido acarinhada. Lutamos para que volte com um novo ciclo, porque é importante cimentar esses laços entre as comunidades, e isso é feito primeiro pela cultura.

Centro de Documentação

Isso tem a ver com a forma de Portugal fazer diplomacia? Alguns países da América Latina patrocinam produções culturais.

Espanha tem uma coisa muito parecida com a Cena Lusófona e que apareceu até depois que é a Iberescena, que faz o que a Cena Lusófona fazia em todos os países da América do Sul que falem a Língua Espanhola e existe até hoje e com muita importância. Espanha tem investido muito aí, independentemente dos governos. Era o que devia ter existido aqui. Infelizmente, os tempos áureos da Cena Lusófona foram uma aposta de um determinado governo e, quando esse governo mudou, as coisas passaram a ser logo diferentes. Mantivemos o projeto, fomos ao apoio dos ACP da Europa, conseguimos fazer uma grande iniciativa, mais um estágio internacional de atores num grande projeto Europeu e isso durou mais algum tempo.

Ao ficarmos sem instalações, sem condições e sem financiamento, seguiu-se um período de declínio. Com o pretexto destas instalações, onde temos uma boa sala para formação, um bom Centro de Documentação com boas instalações, podemos agora abrir ao público, aos investigadores e aos estudantes. Com isso estamos a chamar de novo a atenção das instituições para a importância de um trabalho de interculturalidade que foi feito, que é imprescindível na comunidade e que devia continuar. Queremos relançar a nossa atividade mas precisamos dessa compreensão. Sem esse contexto, não é possível!

Fotografias: Isabel Simões

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