Cultura

«Já não há aquela ideia do sagrado da sala de cinema»

Conhecido realizador do cinema português, João Botelho apresentou, em Coimbra, no Teatro Académico de Gil Vicente, o seu filme mais recente, uma adaptação da obra “Os Maias”, de Eça de Queirós. Critico sobre o cinema moderno, diz-se surpreendido com o regresso dos adultos às salas. Agora, com 65 anos, pretende continuar a fazer obras que interessem e tem ideias para voltar a adaptar textos de autores portugueses. Por Tiago Rodrigues

(©Nuno Ferreira Santos)

(©Nuno Ferreira Santos)

Porquê a adaptação de “Os Maias”, obra de Eça de Queirós?

Estou a ficar mais velho e acho que o cinema em Portugal é um privilégio, não se pode brincar. É uma coisa que é apoiada e, portanto, acho que tenho de fazer obras que interessem divulgar, como há dois anos filmei o “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa. Há coisas em Portugal muito importantes que as pessoas não ligam tanto como deviam. “Os Maias” tem esta ideia de ser um texto obrigatório nos liceus, como um dos mais importantes da literatura portuguesa, mas acho que as crianças têm grandes dificuldades de concentração, de leitura… Concentram-se na vertigem, na velocidade, têm demasiada informação, sabem muito mais do que eu sabia. Cultivar a leitura é uma coisa importante e este filme ajuda um bocado as pessoas mais novas a lerem. Tem outro efeito engraçado, que não estava à espera, que é o regresso dos adultos ao cinema…

Porque é que isso o surpreendeu?

O cinema hoje é mais um sítio onde se come, se bebe, se fala e se mandam mensagens, do que um sítio aberto onde se reflete, se pensa ou se tem noções mais ou menos puras. Ficou para os adolescentes e é divertidíssimo. Não tenho nada contra, mas é dominantemente com uma história infanto-juvenil que as pessoas se divertem, que consomem e quando gostam é porque é giro e depois vão à sua vida. De vez em quando é preciso contrariar e ir ver os malucos ou artistas, como queiram chamar, que tentam parar um bocado e dizer “atenção, vejam, ouçam, vejam, ouçam”. Porque quando se faz um filme com três mil planos eu acho que não se vê nenhum. Quando se faz um filme com cinco mil efeitos de voz, não se ouve nada. Vê-se umas imagens a desfilar, umas situações incríveis, umas aventuras exóticas ou obscenas, mas é uma coisa muito vertiginosa. É como estar muitas horas na abertura de uma exposição e depois não demorar um segundo a ver um quadro!

E como tem sido a reação das pessoas a este filme?

Eu acho que se devem fazer coisas importantes e que resistam ao tempo. Não sei se o filme é bom ou mau, é sobretudo o tempo que decide. Se daqui a trinta anos ainda se puder ver este filme, é como a história da literatura, como uma obra do Eça, mantém-se, resiste ao tempo. É uma função nossa, tentar lutar contra o tempo e contra o consumo imediato das coisas.

Sentiu que esse seria um grande desafio para si, como foi o “Filme do Desassossego”?

São coisas quase intocáveis. Quando filmei o “Livro do Desassossego”, as pessoas diziam que era impossível de adaptar. Eu acho que se pode fazer um filme com tudo. Até posso fazer um filme inteiro só com a descrição do Eça de Queirós do Ramalhete. O cinema para mim nunca é a história, é o modo como se conta a história, o modo como se filma. A minha maneira de filmar é diferente do que a de qualquer outra pessoa. Este romance dá para fazer setenta filmes diferentes. Esta é a minha versão, a minha leitura disto. Foi duro ter de escolher, deitar fora coisas que são muito importantes. O mais dramático é escolher, eu não escrevi nada, o texto é todo do Eça e respeitei-o aos limites.

O que o leva a basear-se em obras de grandes autores portugueses para depois as “projetar” no grande ecrã?

Às vezes temos uma certa desconfiança de nós próprios. Normalmente as coisas são postas de fora para dentro e nós não temos orgulho no nosso modo de ser, no modo de ver. Eu acho que nós somos fantásticos e não é na ação, nem na montagem, ligando ao cinema, mas somos muito bons na composição. Não somos muito bons na prosa, mas somos na poesia. Somos diferentes e estas obras portuguesas são muito importantes. É bom transformá-las em imagens e sons, que é coisa que eu sei fazer.

Imagina-se a fazer novas adaptações de outras obras portuguesas?

Já fiz tantas… Só escrevi meia dúzia de filmes, fiz quinze longas-metragens, mais quinze ou dezasseis médias e curtas, é um privilégio. Já adaptei muitos autores em que o texto pré-existente é a matéria que eu trabalho. Imagino-me com outros, claro. Uma das coisas que eu quero fazer, se conseguir viver mais uns tempos, é a “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto. Uma viagem heróica dos portugueses, fantasiosa e louca, à volta do mundo, com um barco!

O filme “Os Maias” levou milhares de espectadores às salas do país. Isso demonstra que o cinema português não é esquecido?

Quando as coisas são importantes, desde que sejam bem lançadas, há público para elas. Uma das coisas que eu mais gostei foi o regresso dos adultos. Não é pelo facto de os adolescentes que são obrigados a ler “Os Maias” e que vêm com os professores ver o filme, mas é a ideia do regresso dos adultos que foram escorraçados das salas. Há muitos adultos que não têm paciência para estar a ouvir comer e beber ao seu lado ou ouvir telemóveis a tocar. Hoje há muito mais cinema de referência clássica nas séries de televisão americanas, enquanto nas salas há um cinema mais infanto-juvenil.

Acha que essa continuará a ser a tendência no cinema do futuro?

É difícil de dizer. O que está a acontecer é que cada país tem muito cinema americano e só depois é que vem o cinema nacional. Acontece em Portugal, em França, em Itália… Esses filmes deixaram de circular, ficam apenas no seu país e o resto é cinema americano, que ocupa tudo e são tão caros que precisam do mundo inteiro. É uma indústria, um mercado em que os atores são caríssimos e as produções também. Há cada vez menos salas e a maioria dos jovens ficam em casa, descarregam dos computadores, já nem DVD’s compram. Hoje está tudo na Internet e já não há aquela ideia do sagrado da sala de cinema: uma sala escura e um ecrã.

Essa cultura está, de certa forma, a desaparecer?

Está a morrer. Hoje está tudo diferente, os miúdos têm dez vezes mais informação do que eu tive, sabem os nomes dos atores e dos técnicos. Acham que o cinema começou com o Tarantino, mas não, começou há cento e tal anos, com os irmãos Lumière. Há uma história do cinema e eles abdicam um bocado disso, há um esmagamento da memória. Não é só no cinema, mas também na própria história de Portugal, da pintura, da arte. Ninguém sabe, é tudo a correr, o contemporâneo, o eficaz, o rápido, o hoje! É preciso ter uma certa calma, uma pausa, pensar o sentido da vida, o sentido das coisas, pensar a política. As pessoas são muito individualistas, têm uma realidade virtual em que cada um tem o seu computador, as suas referências, o Facebook, o Instagram. É uma relação muito virtual com a vida. Há pouca conversa entre as pessoas, pouca discussão, pouca filosofia. A vida é uma coisa preciosa e devemos parar e pensar.

Considera que os seus filmes fazem pensar?

Inquietar. O cinema é para as emoções, para a inquietação. Não pode ser para o conformismo, não dá lições de nada a não ser lições de cinema. Deve inquietar e, quando um filme corre bem, as pessoas devem ficar um bocadinho alteradas, mudar a sua vida. Perceberem que a vida é complexa, acharem que uma pessoa boa pode ser um bandido durante meia hora e que um bandido pode ser um santo durante uma hora.

Acha que esta digressão é importante para o cinema português?

Há cidades em Portugal que não têm cinema sequer. Há Cineteatros que não têm programação, nem projetores. Na aldeia, quando era miúdo, havia um senhor que vinha com um lençol, um projetor e filmes do Chaplin. Esta digressão é a mesma coisa, vai-se à vila ao lado, aos cineteatros e traz-se as pessoas que não têm acesso às coisas para terem o direito a ver também.

Que balanço faz da sua carreira e que projetos tem para o seu futuro?

Carreira não tenho. Carreiras são os autocarros [risos]. Eu tenho feito coisas, tenho trabalhado muito. O direito ao trabalho é uma das coisas mais maravilhosas. Já fiz muitos filmes, uns melhores, outros piores. Tento sempre que o próximo seja melhor do que o anterior, se não não estou cá a fazer nada! A minha ideia é tentar continuar a fazer obras que eu acho que interessam a muitas pessoas, que não interessam só a mim.

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